GIORGOS ANDREOU sobre “PERIPLUS”
Amélia Muge | Michales Loukovikas
/ENGLISH/ GIORGOS ANDREOU on “PERIPLUS”
/ΕΛΛΗΝΙΚΑ/ Ο ΓΙΩΡΓΟΣ ΑΝΔΡΕΟΥ για τον “ΠΕΡΙΠΛΟΥ”
O que torna “Periplus” particularmente interessante é o facto de não ser um registo de música tradicional, seja de Portugal ou da Grécia. Quer dizer, não é um álbum que tenta simplemente agregar, de algum modo, uma parte da tradição e a sua sonoridade. Em qualquer caso, isso seria mais uma questão de folclore e não de criação. É claro que faz uso de elementos de ambas as tradições em quantidade considerável.
Mas o característico do “Periplus” é o seu dinamismo emanado destes dois cantoautores, Amélia Muge e Michales Loukovikas, que compuseram música original e trabalharam a sua matéria musical usando vários recursos na linguagem poética da canção: versos de poetas quer gregos quer portugueses, versos da antiga literatura helénica, ou da sua própria linguagem moderna, ou ainda, em menor grau, algumas canções populares de cada tradição, portuguesa ou grega, sem grandes alterações, onde, é claro, o objectivo é demonstrar as analogias que existem nesta grande bacia chamada Mediterrâneo.
Nesta grande bacia chamada Mediterrâneo, o grande viajante – infelizmente para os portugueses e para o resto dos povos do planeta – foi um grego antigo (mas também moderno no meu ponto de vista) chamado Odisseu (Ulisses). Neste caso, Odisseu é um arquétipo universal. Fundou, entre outras coisas, Lisboa, como o embaixador de Portugal acabou de dizer. Assim, ele até foi capaz de realizar este feito, para lá do seu envolvimento com os Lestrigões, os Ciclopes, Circe, Nausícaa, etc.
Contudo, o que é importante quer na tradição portuguesa quer na grega – e gostaria de o dizer muito seriamente – é o facto de ela ter emergido como música popular urbana precisamente porque não houve como antecendente um profundo desenvolvimento de uma música clássica, “académica”. É claro que há importantes compositores de música académica na Grécia; é claro que os há em Portugal; mas nem a Grécia nem Portugal têm Bach, Beethoven, Mozart, Vivaldi, Corelli, Scarlatti, Bellini, Puccini, etc. Constatou-se que onde, por várias razões históricas e culturais, não houve um desenvolvimento da linguagem académica musical, o que chamamos música clássica, há espaço para uma maior energética memória da tradição e ainda mais espaço para o desenvolvimento e apropriação desta tradição na sua transição para um meio urbano. É assim o fado, o rebétiko e é assim o blues, o tango… E todo o tipo de música que agora consideramos como emanação da tradição, e que é essencialmente popular, cresceu sobretudo num ambiente onde o peso da grande música sinfónica académica era inexistente.
Existem, é claro, grandes diferenças entre o fado e o rebétiko, como também um grande número de analogias. As analogias são exactamente as implícitas pelo ambiente geográfico e cultural que mencionei anteriormente, denominado Mediterrâneo, que determina uma atitude face á vida, uma postura existencial, á gente de culturas vivendo à volta dele. E o que é isso? É, no meu ponto de vista, a possibilidade de valorizar e dar uma grande importância à dôr individual.
Se concordamos, como os nossos amigos portugueses, que existe na nossa música algo que nos liga, isso está na forma como lidamos com o âmago emocional da música; quer nas palavras – a aventura individual, existencial, de cada um – quer na música. Quer dizer a nossa faculdade musical, isto é, a nossa forma de entender o que é a canção. Porque falamos do fado como uma canção, falamos da nossa música de tradição popular como uma canção. E a canção necessita de um herói e de um companheiro do herói. O herói é o cantor e o companheiro, o instrumento que o acompanha. A guitarra portuguesa, no caso de Portugal, o bouzouki no nosso caso, têm este papel. É um duo, um duo de silêncio, um duo longe das grandes formas sinfónicas ‘fechadas’, um duo convincente, um duo de profunda e comovente emoção.
Eu gosto do “Periplus” porque é o esforço, a atenção, o testemunho dinâmico de dois autores, um português outro grego, que compõem originais, tendo em conta ao mesmo tempo de onde vêm e para onde vão. Para mim isto é a quintessência da criação, de toda a criação musical: respeitar as origens, de onde se vem, e ao mesmo tempo ser-se capaz de entrar em diálogo com elas e redefini-las. Porque uma tradição que não é redefinida e que não progride, morre e transforma-se numa mera atitude passadista e pitoresca.
Outra coisa que me impressionou no trabalho da Amélia e do Michales: a existencia de alguns títulos, algumas sequências. O carácter destas sequências não é tanto investigativo, musicológico ou classificativo, mas antes emotivo e artístico. Sinto-me compelido a mencioná-las porque elas mesmas fazem nascer pensamentos e sentimentos. A primeira é “Das Ausências” e a segunda “Dos Caminhos”. É de notar que para nós, gregos, o sentido de “caminho” aplica-se também ás escalas musicais populares.
A terceira sequencia é “Dos Cantos”. A palavra “canto” em grego (tragoudi) deriva da antiga tragédia helénica; é melos, que é melodia; é a selecção de uma parte de um todo maior, mas uma parte de grande importância emotiva, ética, conceptual e musical. Segue-se “Das Ilhas”. A ilha transporta um especial simbolismo. É uma parte de terra rodeada por uma parte do mar. É uma parte da razão rodeada pelo mar do subconsciente.
Depois temos “Das Vozes”. A voz, como disse anteriormente, é o instrumento da canção. Não é por acaso que nesta sequência estão canções com antigos textos gregos, poesia grega antiga, em conjunto com alguns elementos tradicionais. Temos, portanto, tradições que se relacionam. Depois vem a sequencia “Dos Embalos”. Uma canção de embalar é o que dedicamos ao pilar que se segue na existência humana quando alguém não lembra nem sente, o sono-morte. Há muita literatura e discursos filosóficos na civilização helénica antiga sobre a conexão entre o sono e a morte.
A sequencia que se segue é “Dos Amores” com a variação de uma nossa deslumbrante canção tradicional “A folha da rosa” que foi encontrada também na música portuguesa numa similar, quase idêntica forma e atitude emotiva. A sequencia seguinte “De Profundis”, é, evidentemente, uma confissão em matéria de existencia, amor, emoção. O excelente “Os meus ditames” está aqui incluído, com versos de Ares Alexandrou e música de Michales Loukovikas, do seu trabalho prévio, “O Ouro do Céu”, dedicado ao grande pensador, poeta e autor grego.
Segue-se “Das Tascas e Tavernas”, com a supra-citada similitude na atitude dos povos de ambas as culturas. Evidentemente, que, uma vez que estamos a falar da relação da tradição com a criação pessoal, a canção que Michales e Amélia escolheram, “Os mangas da taverna”, não é de um grego desconhecido, mas do grande compositor Panaiotes Tountas. Tountas, um dos mais eruditos e importantes compositores de canções populares, tendo estudado música, foi, durante seu período esmirnaico, quase um músico académico e, ao mesmo tempo, popular.
Finalmente, há a sequência “Tão longe tão perto”, um registo poético de semelhanças e diferenças, com o momento alto e, quanto a mim, o ponto mais alto do CD, na paralela interpretação da mesma canção com Eleni Tsaligopoulou em grego e Amélia Muge em português. É, emocionalmente, um momento muito importante, eu considero-o um climax; na verdade fiquei sem fala. O CD acaba com a canção que se justifica ter alguma subjectividade por parte da Amélia, uma canção dedicada a uma prévia importante presença, a de Violeta Parra, de quem uma composição foi de algum modo referência e fonte de inspiração para a Amélia.
Gostava de concluir dizendo que há composições muito importantes em “Periplus”, quer de Amélia Muge quer de Michales Loukovikas, e este é para mim, o mérito do CD. Para lá das conexões, para lá das analogias entre culturas, para lá da intenção de mostrar, demonstrar de novo e redefinir fronteiras e contactos de muitos géneros, o que é importante, para mim, é se se consegue produzir uma obra de arte. Quando, em qualquer situação, é produzida uma obra de arte, todas as intenções prévias se justificam. Se não houver obra de arte, tudo o resto são apenas slogans que não se concretizaram.
Muito bem, meus amigos, e continuem!
Discurso durante a apresentação do “Periplus” na
livraria “Jano” em Atenas a 23 de Outubro de 2012
● Ver também MARIA DO ROSÁRIO PESTANA sobre “PERIPLUS”
TROUPE MUSICAL do PERIPLUS: Amélia Muge: voz, guitarra braguesa, coros, fala, sons de ambiente. | Michales Loukovikas: voz, coros, fala, amostras de vozes e sons, estalos, percussão, acordeão, palmas.
António Quintino: contrabaixo. | Filipe Raposo: piano, teclados, acordeão. | Harris Lambrakis: ney (flauta oriental), flauta de bisel. | José Martins: percussão, kalimba, sintetizador, sons, palmas. | José Salgueiro: percussão, palmas. | Kyriakos Gouventas: violin, viola, bandolim. | Manos Achalinotopoulos: clarino (clarinete folk), voz, coros. | Ricardo Parreira: guitarra portuguesa.
CONVIDADOS ESPECIAIS: Eleni Tsaligopoulou, cantora: lengalengas, risos, coros, voz. | Hélia Correia, escritora: voz. | Outra Voz, coro dos cidadãos de Guimarães: sons de água, de vento, de mar, de ambiente, coros, lengalengas, respirações, falas.
OUTROS PARTICIPANTES: André Maia: fala. | Catarina Anacleto: violoncelo, coros. | Cristina Benedita: coros. | Dimitris Mystakidis: bouzouki, djurá, guitarra de rebético. | Eduardo Salgueiro: palmas. | Francisco e Sofia Van Epps: lengalengas, risos. | Irene Bakalopoulou: harpa. | José Barros: bandolim, cavaquinho, guitarra braguesa, coros. | José Manuel David: kalimba, voz, trompa, gaita, coros. | Kostas Theodorou: contrabaixo, percussão. | Mariana Abrunheiro: coros. | Margarida Guerreiro: pragas. | Pedro Pinhal: viola de fado. | Rui Vaz: fala, coros. | Teresa Muge: voz, pragas. | Ziad Rajab: oud. | Zoe Tiganouria: acordeão.