MARIA DO ROSÁRIO PESTANA sobre “PERIPLUS”
/ENGLISH/ MARIA DO ROSÁRIO PESTANA on PERIPLUS

Maria do Rosário Pestana: Este texto foi lido no Colóquio Internacional “Espaços Literários e Territórios Críticos. Para
uma abordagem do espaço literário: geopoética e geocrítica
na transposição das fronteiras do conhecimento”, realizado
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre 29
de junho e 1 de julho de 2017. Agradeço à Organização do Colóquio – Instituto de Literatura Comparada Margarida
Losa (ILCML) – o convite para participar no evento.
Música e interlocução
“Tão longe, tão perto:
PERIPLUS –
deambulações
luso-gregas”
de Amélia Muge e Michales Loukovikas
Instituto de Etnomusicologia
– Centro de Estudos
em Música e Dança
O projeto musical Periplus / deambulações luso-gregas foi concebido por dois músicos do sul da Europa: Amélia Muge, cantora, compositora, instrumentista, e autora de inúmeras letras, uma referência da música portuguesa desde os anos 90 do século passado; e Michales Loukovikas músico, compositor, produtor de rádio e jornalista grego. Este trabalho artístico, materializado num belíssimo fonograma, foi apresentado ao público português em 2012, nos palcos da Culturgest, do Centro Cultural Vila Flor ou do Festival Músicas do Mundo.
Periplus é um projeto exemplar do papel das artes, e da música em particular, em 2012 e no século XXI: surge num contexto cultural pautado por “valores” neoliberais, valores esses que segundo Castoriadis orientam os seres humanos “dans un mode de socialisation où coopération et communauté ne sont considérées et n’existent que sous le point de vue instrumental et utilitaire” (Castoriadis 1979, 36);(*) e no ponto alto da crise económica e financeira que assolou e fraturou a Europa em norte e sul e relegou para a periferia dos assuntos a vida social e os indivíduos.
- (*) Castoriadis, Cornelius (1979), Transformation sociale et création culturelle. Sociologie et sociétés. 111: 33–48.

Proposta para um novo dracma com Castoriadis no centro (e Sócrates no fundo à esquerda )
– só se os políticos gregos os tivessem no seu lugar e não fossem eunucos…
O acolhimento que teve por parte do público – sendo agora um conteúdo introduzido pelos organizadores deste congresso sobre geopoética e geocrítica na transposição das fronteiras do conhecimento – ilustra a possibilidade do poder criador e de participação dos indivíduos músicos na construção de um Outro conhecimento, um conhecimento sensível aberto ao diálogo, à partilha, assente no valor da alteridade, na ética do respeito pelo outro.
Periplus faz-nos imergir numa história de circum-navegação, num espaço recortado pelos mares do Mediterrâneo, do Índico, do Atlântico, atravessando territórios de memórias de viagem e também de dominação. No contexto social e político que referi, este périplo introduz um novo assunto a propósito de Portugal e da Grécia – a partilha ancestral de músicas e de conhecimentos – e propõe um novo lugar de enunciação, dando visibilidade a outra geografia relacional: o Mediterrâneo. Na verdade, a costa e o mar Mediterrâneo estão no centro da música – nos navios que o atravessaram, que dele partiram e a ele regressaram – um perímetro de comunicação e de vida social que rompe com as fronteiras territoriais e étnicas que definem os estados-nação, revelando uma outra cartografia da coexistência, da conexão entre pessoas, do pertencimento e da identificação pela música. Aliás, este projeto documenta a sustentação do etnomusicólogo Bruno Nettl de que a música expressa e interpreta relações entre pessoas, entre culturas e entre sociedades, independentemente das barreiras que as separam.
Os músicos Amélia Muge e Michales Loukovikas começaram o projeto nas redes da Internet num processo de descoberta mútua, o qual passou pela revelação e partilha de canções e poesias de um e outro lado da Europa. A constatação da proximidade e o compromisso intersubjetivo deu-se imediatamente nos primeiros contactos. Michales Loukovikas diz que começaram a trocar e a pesquisar canções e poesias das tradições lusitana e helénica, portuguesa e grega, do passado e do presente. No documentário que podemos ver e ouvir neste site, Amélia Muge referiu: “o que me impressionou muito foi o trabalho [O Ouro do Céu] baseado na poesia do grego Ares Alexandrou: uma poesia imediatamente ligada ao espaço e ao lugar, feita uma parte durante o fim da 2ª guerra mundial, nos campos de concentração da Líbia e uma segunda parte nas ilhas do exílio”. O espaço, a viagem, mas também o tempo, começaram a desenhar a visão de mundo que une estes dois indivíduos músicos e que culminaria em Periplus.
Atrás referi que este projeto é exemplar. Defendo que é exemplar na medida em que proporciona uma experiência assente numa prática cognitiva de viagem, que abre uma possibilidade em rutura com o paradigma do mundo atual, desconstruindo criticamente tanto as visões unitárias da música local/nacional – a referência ao mundo – como as visões relativistas ‘pós-modernas’ que indiferenciam as produções musicais e culturais.
Periplus espelha bem a dimensão dialogante, interlocutória e transformadora da música. Por exemplo, em “Dos Caminhos”, percorrendo as rotas da escala pentatónica, os músicos seguem trilhos em África e desenham itinerários em Epiro, num discurso musical em constante transformação. Nessa cartografia as rotas dos caminheiros são densificadas pelo cruzamento com os caminhos do tempo: o longo passado de convivialidade entre grupos, de conexão entre pessoas, de partilha e tensão de conhecimentos e valores.

A cicládica “frigideira” usada
na capa do Periplus
A ideia de transformação autónoma e crítica aparece em inúmeras metáforas musicais e visuais ao longo deste projeto, desconstruindo as conceções unitárias da música e da cultura. Essa ideia é representada também visualmente no disco, com a imagem do fundo de uma frigideira de barro onde se fazia o pão (como metáfora de um neo-humanismo?), que faz parte de um acervo arqueológico. Os círculos concêntricos, trabalhados pela designer Cristiana Serejo transformam-se adquirindo outras formas, inclusive humanas.
Em “Palavra dada” os músicos encontraram na partilha de um mesmo ritmo um ponto de partida e também uma conexão entre duas línguas e diferentes conceitos de justiça e de usos da palavra seja para punir ou salvar, para fazer crescer ou honrar: pragas algarvias, a canção da rega, o hino a Némesis (deusa que personifica o destino e também a vingança divina), a dança cretense Syrtós. Os músicos entrelaçaram estas canções – tão divergentes nos conhecimentos de mundo que veiculam – de modo crítico e autónomo, realçando a conexão de um elemento comum: a palavra. Neste sentido, podemos dizer que a prática destes músicos – a música que fazem em Periplus – define uma geopoética, na acepção de Bertrand Westphal. Considero que este conceito é nuclear do projeto artístico Periplus e que se estende a outras dimensões, sempre críticas. No depoimento que ouvimos, Michales Loukovikas descreveu a surpresa que teve ao encontrar pontos de conexão, proximidades, entre uma canção cretense e uma canção portuguesa, tendo, a partir daí, construído uma história musical dessa canção da idade média aos nossos dias.
A ideia de pontes, de conexão estende-se a domínios da música como o da chamada música culta – do primeiro documento escrito de música de que há memória, o epitáfio de Seikilos – da música folclórica, da música de intervenção com Zeca Afonso, etc. Esse princípio aplica-se ao tempo passado/presente: também o passado não é neste projeto musical uma determinação que priva estes indivíduos músicos da liberdade de construir o seu presente e pensar o seu futuro. As tradições, os documentos históricos que testemunham as viagens cantadas e tocadas neste disco, são assumidos de modo crítico e emancipado, enunciando passo a passo um Outro passado, aberto à partilha e conexão intersubjetiva, rompendo tanto com a atomização dos indivíduos nos seus egoísmos narcisistas, como com a sua redução a massas ou a coletivos estereotipados. O projeto musical Periplus oferece a cada um de nós essa visão crítica e comprometida através de uma experiência de conexão cultural e musical, nas relações históricas, na valorização da diferença, na horizontalidade das participações e aberta a quem se dispuser a ouvir e a deixar-se mobilizar.
● Ver também: GIORGOS ANDREOU sobre “PERIPLUS”
TROUPE MUSICAL do PERIPLUS: Amélia Muge: voz, guitarra braguesa, coros, fala, sons de ambiente. | Michales Loukovikas: voz, coros, fala, amostras de vozes e sons, estalos, percussão, acordeão, palmas.
António Quintino: contrabaixo. | Filipe Raposo: piano, teclados, acordeão. | Harris Lambrakis: ney (flauta oriental), flauta de bisel. | José Martins: percussão, kalimba, sintetizador, sons, palmas. | José Salgueiro: percussão, palmas. | Kyriakos Gouventas: violin, viola, bandolim. | Manos Achalinotopoulos: clarino (clarinete folk), voz, coros. | Ricardo Parreira: guitarra portuguesa.
CONVIDADOS ESPECIAIS: Eleni Tsaligopoulou, cantora: lengalengas, risos, coros, voz. | Hélia Correia, escritora: voz. | Outra Voz, coro dos cidadãos de Guimarães: sons de água, de vento, de mar, de ambiente, coros, lengalengas, respirações, falas.
OUTROS PARTICIPANTES: André Maia: fala. | Catarina Anacleto: violoncelo, coros. | Cristina Benedita: coros. | Dimitris Mystakidis: bouzouki, djurá, guitarra de rebético. | Eduardo Salgueiro: palmas. | Francisco e Sofia Van Epps: lengalengas, risos. | Irene Bakalopoulou: harpa. | José Barros: bandolim, cavaquinho, guitarra braguesa, coros. | José Manuel David: kalimba, voz, trompa, gaita, coros. | Kostas Theodorou: contrabaixo, percussão. | Mariana Abrunheiro: coros. | Margarida Guerreiro: pragas. | Pedro Pinhal: viola de fado. | Rui Vaz: fala, coros. | Teresa Muge: voz, pragas. | Ziad Rajab: oud. | Zoe Tiganouria: acordeão.

La Justice et la Vengeance divine poursuivant le Crime (A Justiça e a Vingança divina [Némesis] perseguindo o Crime, de Pierre Paul Prud’hon (1808)