AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
ARCHiPELAGOS / Passagens
VIII. EM TEMPO DE INDIGÊNCIA
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● Sem deuses ● Nós ● Feitiço
● As ilhas do Egeu ● A ruína da Grécia
● Falamos de sombras (Democracia)
● Um início
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/ENGLISH/ ARCHiPELAGOS • VIII. IN TIMES OF INDIGENCE
/ΕΛΛΗΝΙΚΑ/ ΑΡΧΙΠΕΛΑΓΟΣ • VIII. ΣΤΗΝ ΕΠΟΧΗ ΤΗΣ ΕΝΔΕΙΑΣ

ARCHiPELAGOS / Passagens: AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
Hélia Correia: A Terceira Miséria & Indignação (excertos)
17. Sem deuses
– Hélia Correia / Amélia Muge
• Arranjo: A. Muge, António José Martins, Michales Loukovikas
Para quê, […] para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
[…] sem deuses, sem o sentimento
Sequer da sua falta, nós nascemos,
E incapazes de lembrar, secando,
Sugando tudo, até aquilo que não
Nos serve de alimento, o que circula
Nas entranhas da terra, a sua linfa,
Essa que os argonautas ainda viram
Exsudar, como um sangue, dos rochedos
Quando tudo cantava e era ferido.
• Canto e voz ritmada: A. Muge / Coro: Maria Monda, A. Muge •
Contrabaixo: António Quintino / Percussão: José Salgueiro / Violino: Kyriakos Gouventas
● Hélia Correia (nascida a 1949 em Lisboa) é uma escritora de romances, contos, sendo também dramaturga e poeta. Reinterpreta mitos helénicos dando destaque a heroínas como Antígona, Helena, e Medeia. Ganhou o Prémio Camões (2015), a distinção mais prestigiada do mundo Lusófono, que dedicou à Grécia, de onde vem a poesia, sem a qual não seríamos nem teríamos nada, como disse na entrega do prémio, concluindo com a exclamação Viva a Grécia! Além disso, é uma dupla pena que ninguém se tivesse interessado em publicar A Terceira Miséria na Grécia. Bem, é a quarta miséria que nos cabe! ● Argonautas: heróis da mitologia helénica que nos anos anteriores à Guerra de Troia (c. 1300 a.C.) acompanharam Jasão de Tessália na viagem a Cólquida, na costa do Mar Negro (actual Abkházia na Geórgia ocidental), em busca do Velo de ouro; o termo argonautas significa, literalmente, os marinheiros do Argo, nome dado ao navio em que viajam, em honra do seu construtor – Argos. Numa das suas aventuras, vão dar ao Monte Díndimo, lugar seco e rochoso, situado na Frígia (Ásia Menor); aí, por engano, acabam por matar os seus aliados e protegidos de Cibele (ou Reia) – deusa daquele lugar, da terra, da fertilidade, da montanha, a mãe de todos os deuses e de todos os seres, a Senhora de muitos nomes…; em sua homenagem e a título de pedido de perdão pelo erro, oferecem-lhe sacrifícios e a deusa, em reconhecimento, faz nascer do rochedo uma fonte de água cristalina (Fonte ou Nascente de Jasão) e à volta dela brotam ervas, flores e muitas outras plantas.

18. Nós
– Hélia Correia / Michales Loukovikas
• Arranjo: M. Loukovikas
Nós, os abandonados, os que não
Sabem sequer como aplacar
E a quem,
Nós, os emudecidos,
Irmanados com os sem-terra, nós,
Os futuramente esfomeados,
Bárbaros com os pés no alcatrão,
Bebedores de petróleo, como pode
De novo a praça,
A Ágora, juntar-nos?
• Canto: Amélia Muge / Coro: Maria Monda, A. Muge • Contrabaixo: António Quintino
Guitarra: Dimitris Mystakidis / Percussão: José Salgueiro / Piano: Filipe Raposo
● Ágora: praça central na antiga pólis helénica; literalmente significa assembleia ou ponto de encontro; começa por ser o centro da vida política, artística, espiritual e atlética da cidade; mais tarde, também funciona como pólo económico: um mercado com tendas ou lojas, atraindo artesãos que, à sua volta, constroem as suas oficinas. Desta dupla função da ágora – espaço político-económico – derivam dois verbos gregos: ἀγορεύω (agoreúō), falar em público, e ἀγοράζω (agorázō), comprar, ir às compras. É também origem da palavra agorafobia (receio mórbido de espaços largos, como ruas e praças, em especial de sítios públicos).

Uma representação imaginária da Ágora ateniense na época de Péricles
19. Feitiço
– Hélia Correia / Amélia Muge
• Arranjo: António José Martins, Filipe Raposo
Esses – que não existem
E nos deixaram assustados, sós,
Sem as ferramentas adequadas,
Sem pensamento,
Sem esses deuses temperamentais
Que tomavam partido nos combates.
Transformados em porcos, por feitiço,
Pela malevolência,
Exactamente
Como na Odisseia,
Não sabemos
– e os Gregos esqueceram –
Como é que tal feitiço
Se desfaz?
Experimentos
– Amélia Muge
Orelha de porco
Gato sapato
Olho de rato,
Um ramo torto
Metade do bico da cotovia
Rosmano mocho
Bago romã
Unha de coxo
Perna de rã
Língua da avó mas que seja torta
Pingo de cuspo
Pico do cacto
Escama de peixe
Pêlo de gato
Asas de mosca atadas num feixe
Uma nota preta
Um cheque careca
Moeda furada
Um arroto de banqueiro
O suor de um ano inteiro
• Canto, efeitos vocais, voz falada: A. Muge
• Percussão: José Salgueiro, A.J. Martins
Sintetizadores: F. Raposo
● Odisseia: ver Homero, em ARCHiPELAGOS • VII. ILHAS IMAGINÁRIAS.
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20. As ilhas do Egeu
– Hélia Correia / Manos Achalinotópoulos, Amélia Muge
– Livre improviso:
Harris Lambrakis, M. Achalinotópoulos, A. Muge, Kyriakos Gouventas
• Arranjo: Michales Loukovikas
[…] Só mais tarde […]
O que desconhecia a mansidão […]
Se apercebeu do uivo que soltavam
As ilhas todas, com as suas praias
E os seus bosques vazios. […]
[…] Sim, foi essa
A primeira miséria, a deserção
Dos deuses. A segunda, a sua morte,
Já na morte de Pã anunciada
Pelo lamento dos bosques, o clamor
Lutuoso das ilhas do Egeu. […]
Para quê, […] para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
• Voz falada: H. Correia / Canto: A. Muge / Improviso vocal: M. Achalinotópoulos, A. Muge
• Improviso instrumental: H. Lambrakis, ney; M. Achalinotópoulos, clarino; K. Gouventas, violino
Pedal: K. Gouventas, viola; António Quintino, contrabaixo; Catarina Anacleto, violoncelo
● Ilhas do Egeu: ver ARCHiPELAGOS • I. REVISITANDO O ARQUIPÉLAGO. ● Pã: nome originário do grego πάειν (páein, pasto), é o deus da natureza selvagem, de pastores e da música pastoral, de rebanhos e montanhas, companheiro das ninfas, ligado à fertilidade e à primavera; é também o deus da crítica teatral; temido pelos que atravessam florestas durante a noite, atribuem os pavores súbitos que os acometem, quando ouvem sons estranhos, de animais, a Pã (pânico); inventa um instrumento musical chamado Siringe, nome de uma ninfa que para fugir dos ataques amorosoa de Pã se transforma num canavial, a partir do qual ele cria a sua flauta, conhecida como siringe ou flauta de Pã; em versão egípcia, é a constelação do Capricórnio; com pernas e chifres de bode, Pã é uma figura significativa no movimento romântico nos séculos XVII a XIX, bem como nos movimentos neopagãos do século XX.
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21. A ruína da Grécia
– Hélia Correia / Michales Loukovikas
• Arranjo: M. Loukovikas
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.

● Ateísmo: ausência e rejeição da crença na existência de divindades – de qualquer divindade; tem por oposição o teísmo, que acredita na existência de pelo menos um deus. A raiz etimológica da palavra ateísmo tem origem (séc. V a.C.) no grego ἄθεος (atheos), que significa sem deus(es). O termo actual aparece no séc. XVI. ● Monoteísmo: crença na existência de um único deus criador do mundo, onipotente, onisciente e onipresente; uma distinção pode ser feita entre o monoteísmo exclusivo e o monoteísmo inclusivo ou panenteísta que, apesar de reconhecer vários deuses distintos, postula alguma unidade subjacente. Distingue-se do henoteísmo em que, apesar de o crente adorar uma só divindade, admite a existência de outras com a mesma validade e adoração igualmente monolátrica.
• Canto: Amélia Muge / Coro: Maria Monda, A. Muge • Clarino: Manos Achalinotópoulos
Contrabaixo: António Quintino / Guitarra: Dimitris Mystakidis / Ney: Harris Lambrakis
Percussão: José Salgueiro / Piano: Filipe Raposo / Violino: Kyriakos Gouventas

22. Falamos de sombras (Democracia)
– Hélia Correia / Ludwig van Beethoven
• Adaptação / Arranjo: Michales Loukovikas
A Terceira Sinfonia (Eroica), Segundo Movimento, primeira parte
Marcia funebre, Adagio assai, Sotto voce (1804)
Sim, falamos de sombras. Vendo bem,
Incendiámos tudo: Alexandria
E os sábios, as mulheres, […]
O grande coração. Temos aos ombros
O apetrecho dos destruidores, […]:
Essa arrogância
Pela qual o ocidente se perdeu.
A terceira miséria é esta, […].
A de quem já não ouve nem pergunta.
[…] não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre […] os que se entregam,
[…] que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia […]
• Canto: Amélia Muge / Coro: Maria Monda, A. Muge, Rui Vaz, José Manuel David, Pedro Casaes
• Clarinete: Kosmás Papadópoulos / Contrabaixo: António Quintino
Ney: Harris Lambrakis / Percussão: José Salgueiro / Piano: Filipe Raposo
Violino, viola: Kyriakos Gouventas / Violoncelo: Catarina Anacleto
● Ludwig van Beethoven (1770-1827): compositor e pianista alemão na transição entre o classicismo e o romantismo na música ocidental, e um dos mais famosos e influentes compositores do mundo. ● Sua Terceira Sinfonia (1804) foi inicialmente dedicada a (Napoleão) Buonaparte (título original da obra), por acreditar que incorpora os ideais democráticos e anti-monárquicos da Revolução Francesa; mas quando se auto-proclama imperador, retira-lhe a dedicatória; publicada em 1806, a partitura já se intitula Sinfonia Eroica, composta per festeggiare il sovvenire di un grande Uomo; informado da morte de Napoleão (1821), Beethoven diz: Compus para este acontecimento há 17 anos, referindo-se ao Segundo movimento: Marcia funebre (marcha fúnebre); Adagio assai (muito lento); Sotto voce (em voz baixa, sussurrado).
● Alexandria: fundada por Alexandre o Grande por volta de 331 a.C., torna-se um importante centro da civilização helenística; é famosa pelo Farol (ilha de Faros), uma das Sete maravilhas da Antiguidade, e pela Grande Biblioteca, a maior da sua época, incendiada à vez por romanos, bizantinos e árabes embora não haja certezas quanto a estes últimos; os títulos, conservados sobretudo em rolos de papiro, seriam entre 40.000 e 400.000 na altura do seu apogeu, pelo que os sucessivos incêndios fazem dela símbolo de destruição do conhecimento intelectual e artístico; a Biblioteca fazia parte do Museu, instituição dedicada à investigação, onde estudaram muitos dos mais importantes pensadores da antiguidade como Arquimedes, Aristarco, Ctesíbio, Eratóstenes, Euclides, Heron ou Hiparco; depois da Biblioteca principal ter sido destruída, os estudiosos passam a usar uma biblioteca filha, noutro local da cidade: a biblioteca do templo Serapeu, dedicado a Serápis, protector de Alexandria. ● Em 391 d.C. o Serapeu e o remanescente da Grande Biblioteca são de novo pilhados e queimados, agora por soldados e por fanáticos cristãos, por ordem de um decreto do Imperador Teodósio e de outro do patriarca Teófilo. ● O “Grande Terror” em Alexandria atinge o seu climax em 415, com o brutal assassinato da filósofa, matemática e astrónoma Hipátia, instigado por “Santo” Cirilo, sobrinho e sucessor de Teófilo. Sócrates de Constantinopla, um historiador cristão contemporâneo, atesta, na sua História Eclesiástica, que Cirilo incitou uma multidão de 500 monges possuídos “de um ardor feroz e intolerante [… Eles] atacaram-na de surpresa [Hipátia] quando regressava a casa, arrastando-a da carruagem, levaram-na para uma igreja chamada Caesareum [o quartel-general de Cirilo], onde a despiram e assassinaram com óstraca [cacos de barro, fragmentos de cerâmica]. Depois de terem dilacerado e feito em pedaços o seu corpo, levaram os seus restos mortais para um lugar chamado Cinaron, onde os queimaram.”
● A democracia (δημοκρατία, poder do povo) foi concebida na Grécia clássica como um sistema de governo onde os cidadãos exerciam directamente o poder e não através de representantes. A primeira democracia do mundo foi estabelecida em Atenas em 508 a.C. sob a liderança de Clístenes, como um sistema directo e participativo, no qual era o colectivo de cidadãos (Eclésia) que votava na legislação e contas públicas, enquanto que os que eram escolhidos para o exercício de cargos faziam-no de forma colectiva. Esta selecção era feita por sorteio, não por eleição, para não favorecer os ricos, nobres, famosos, com escolarização , eloquentes ou bem parecidos. De facto, o sorteio era olhado como o meio mais democrático de impedir a compra corrupta de votos e dar aos cidadãos uma forma única de igualdade política. Dessa maneira, eram maior o envolvimento dos cidadãos na política, governando e sendo por sua vez governados, como escreveu Aristóteles. Como excepção à regra havia a eleição (não por sorteio) de dez generais – devido à sua experiência necessária em questões políticas e de guerra – e também daqueles que, provenientes das classes mais altas, lidavam com grandes somas de dinheiro: qualquer desfalque poderia ser recuperado de suas propriedades. O desprezo que os primeiros democratas sentem pelos que pensam apenas em privado nos seus assuntos é evidenciado pela palavra idiota, do grego ἰδιώτης – pessoa que não participa activamente na política. Péricles declara que nós não dizemos que um homem que não se interesse de todo por política é um homem que se mete apenas nos seus próprios assuntos; dizemos é que ele não tem aqui assuntos nenhuns a tratar. ● Péricles (c. 495-429 a.C.): estadista proeminente e influente, orador e general (estratega) entre as guerras persas e peloponense, cujo nome está ligado à Era de Ouro de Atenas; promove as artes e a literatura e estimula a evolução da democracia ateniense; num excerto da sua Oração Fúnebre, registada por Tucídedes (História da Guerra do Peloponeso), diz: A nossa politeia não copia as leis dos Estados vizinhos; somos nós que servimos mais como um modelo para os outros do que somos imitadores. Chama-se democracia, porque não são os poucos mas os muitos que governam. Se consultarmos nossas leis, elas prescrevem uma justiça igual para todos a despeito de suas diferenças individuais.
23. Um início
– Hélia Correia / Amélia Muge
• Arranjo: António José Martins, Filipe Raposo
De que armas disporemos, se não destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.
• Canto: A. Muge / Coro: Maria Monda • Contrabaixo: António Quintino / Ney: Harris Lambrakis
Percussão: José Salgueiro / Piano: F. Raposo / Violino, viola: Kyriakos Gouventas
Violoncelo: Catarina Anacleto
● Pólis, quer dizer, literalmente, cidade em grego, mas referindo-se mais ao conjunto dos cidadãos do que à área geográfica que ocupa; também pode significar cidadania. O termo helénico que se refere especificamente à totalidade dos espaços e edifícios urbanos é ἄστυ (ásty). Antes da Batalha de Salamina p.ex., os persas conseguiram ocupar a ásty de Atenas, mas não a pólis, porque os cidadãos embarcaram nos barcos da frota ateniense e partiram. Na historiografia moderna, usa-se o termo pólis para indicar uma cidade-estado grega, embora o termo seja inadequado. As poleis gregas não eram como as cidades-estado fenícias que eram governadas por um rei ou uma pequena oligarquia, sendo os seus habitantes meros súbditos. Assim, o termo pólis acabou por significar estado; derivado de pólis, politeia (πολιτεία) em helénico significa cidade, mas indicando também todos os procedimentos relativos à pólis o que, por extensão, poderia significar tanto cidade-estado como república, administração, governo, governação, comunidade, colectividade; já politeuma significa regime; para não mencionar a etimologia de política…

A Biblioteca de Alexandria durante o seu apogeu
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