AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
ARCHiPELAGOS / Passagens
VII. ILHAS IMAGINÁRIAS
● Uma ilha, Utopia ● Penélope de Ítaca
● Meninos perdidos
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/ENGLISH/ ARCHiPELAGOS • VII. IMAGINARY ISLANDS
/ΕΛΛΗΝΙΚΑ/ ΑΡΧΙΠΕΛΑΓΟΣ • VII. ΝΗΣΙΑ ΤΗΣ ΦΑΝΤΑΣΙΑΣ
14. Uma ilha, Utopia
Dedicado a Ares Alexandrou
– Amélia Muge
• Arranjo: António José Martins, Filipe Raposo
Nesse nome sem lugar / sem saber onde existir
está além sempre a mudar / a chamar e a fugir
tem qualquer coisa de achado / que nunca é encontrado.Qualquer coisa de perfeito / entre o avesso e o direito
doce, amarga, quente e fria, / uma ilha…Qualquer coisa que liberta, / que amarra, que magoa,
que escraviza, que alivia, / uma ilha com o nome de Utopia.No mais absurdo desejo, / no mais escuro do escuro,
ou numa caixa vazia, / há uma ilha…Que nos fala de uma casa / e do estranho em casa alheia
odisseia da ideia que criou a fantasia
dessa ilha com o nome de Utopia.Eternizando horizontes / para lá dos horizontes
seja noite ou seja dia / há ao longe um nevoeiro
uma visão imprecisa / onde a própria miopia
é uma ilha com o nome de Utopia.
• Canto: A. Muge / Voz falada: Michales Loukovikas • Contrabaixo: António Quintino
Harpa: Ana Dias / Ney: Harris Lambrakis
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Campos Elísios (Elíseos), de Carlos Schwabe (1903)
● Utopia: título do livro de Thomas More (1516) em que, numa ilha imaginária, cria um reino com um governo benigno, onde os problemas fundamentais da vida humana em sociedade estão resolvidos e onde impera a alegria, o bem-estar e a felicidade; o grego τόπος (lugar), conjugado com οὐ (não), é Utopia – não-lugar; com εὖ (bem), é Eutopia – bom lugar; em inglês, Utopia e Eutopia são palavras homófonas, pelo que o significado de Utopia se veio a colar a uma ideia positiva, distanciando-se do sentido inicial; o autor ainda refere Udepotia – lugar do nunca; já modernamente, aparece a palavra Distopia, com δυσ- (mau) – mau lugar ou anti-utopia. Seja ela sátira ao estado social da Europa do século XVI, ou idealização de um Estado e de um Governo, o que esta obra consegue é criar uma linguagem e uma disciplina reflexiva plasmada nas temáticas que aborda e na articulação entre elas; o recurso à alegoria e à construção simultaneamente narrativa e dialógica do texto, suporta o questionamento das relações com os outros e com o mundo; o bónus, é o nome para esses exercícios de reflexão sobre o humano, assente em três grandes questões: a igualdade absoluta; o amor à paz e à tranquilidade; o desprezo pelo ouro e a prata. É legítimo afirmar que o pensamento utópico é um dos motores mais poderosos de desenvolvimento das sociedades, mesmo antes de a palavra ter sido inventada, dita e escrita; a natureza da Utopia faz com que se desdobre em duas eternidades: a da procura e a da não-existência. Rafael Hitlodeu, aventureiro português, é o narrador desta Utopia. ● Thomas More, Thomas Morus ou Tomás Moro (1478- 1535): diplomata e homem de estado, advogado e homem de leis, filósofo e escritor, é considerado como um dos grandes humanistas do Renascimento; na sua obra literária – Utopia – não só encontra a palavra para um conceito que faz eco em todas as culturas letradas do mundo, como define os contornos de um disciplinado exercício de reflexão sobre o ser humano e as suas formas de organização social, a valer mais do que as propostas concretas que avança, naturalmente marcadas por ideias e contingências próprias da sua época.
● Ares Alexandrou (1922-1979): nasce em Petrogrado e morre em Paris; filho de pai grego e mãe russa, que lhe dão o nome de Aristoteles Vasiliades, é pelo de Ares Alexandrou que se torna conhecido como tradutor, poeta e romancista; em 1928 a família muda-se para a Grécia; durante a ocupação nazi, adere a um grupo de resistência da juventude comunista, que abandona pouco depois, por divergência não com os ideais, mas com as práticas; após a “libertação” da Grécia é detido pelos britânicos que o deportam com o pai para um campo de concentração na Líbia; mais tarde, apesar de não ter participado da Guerra Civil grega (1946-1949), mas por se ter recusado a negar as suas convicções políticas, é preso e enviado para as ilhas do exílio (no Egeu), sendo finalmente libertado em 1958. Por causa da ditadura que se instala na Grécia em 1967, decide mudar-se para Paris, afirmando-se sempre de uma esquerda não convencional (Eu pertenço ao não existente partido dos poetas). Trabalha toda a sua vida como tradutor: em primeiro lugar de russo, sua língua materna (torna-se um especialista em Dostoiévski) mas também de francês, inglês e outras línguas. É tudo menos um copioso escritor: quatro colecções de poemas posteriormente agrupadas num único volume; um livro – Sem papas na língua – com ensaios, estudos, textos críticos, peças, guiões para filmes e textos similares; alguns trabalhos dispersos publicados, como o relato histórico A revolta de Kronstadt; apenas um romance – A Caixa – a sua obra-prima, que se considera estar entre as mais prestigiadas dos modernos clássicos gregos. Os versos escritos nessas áridas ilhas do exílio, condensam o aspecto trágico da sua vida e obra: um comunista para os carcereiros (era como se denominava quando interrogado), um traidor para os companheiros de prisão. Mas como versejou, O cérebro não é uma barba. / Não deixes os padres / os governantes / os controleiros / fazer-ta. Apenas dois compositores trabalharam musicalmente os seus poemas: Michales Gregoriou (Cartas não entregues, 1977) e Michales Loukovikas (O ouro do céu, 2008). Este poeta foi cantado no trabalho conjunto de Amélia Muge e Michales Loucovikas, Periplus (2012): Nota ilegal, Canção de embalar, Os meus ditames.

Idade do Ouro, de Lucas Cranach o velho
15. Penélope de Ítaca
– Amélia Muge
• Arranjo: António José Martins, Filipe Raposo
Em surdina vai urdindo / malícias tão requintadas
que parada vai fugindo / desfaz as horas em nadasAo tear tece os seus dias / na trama das suas penas
ao tear desfaz as noites / no tecido dos seus aisSe Ulisses tem o espaço / ela viaja no tempo
no ar dos seus movimentos / lançadareira por volanteA bordo desse navio / que é o seu tear errante
lá vai de fio a pavio / para trás e p’ra dianteÉ nos fios desta teia / onde o tecido é a ideia
de uma história aonde a espera / se tece andando no mar
mas ao leme de um tearAvançar e estar parado / trabalhar sem se passar
deste ponto desta trama / dias, meses, muitos anos
estar sempre a recomeçarFoi o tempo como um pano / tecido desta maneira
em Penélope esperando / viajou tanta canseiraTanta determinação / que aqui estará a diferença
entre esperar por Ulisses / ou por D. Sebastião
• Canto: A. Muge • Contrabaixo: António Quintino / Ney: Harris Lambrakis
Percussão: José Salgueiro / Piano: F. Raposo / Violoncelo: Catarina Anacleto
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● Homero (Ὅμηρος, segunda metade do séc. VIII – início do séc. VII a.C.): personagem lendária, possivelmente um bardo cego da Jónia (Ásia Menor), poeta de génio e um não menos genioso compilador de rapsódias de tradição oral, recolhidas junto dos aedos e do próprio povo do período heroico grego, anonimamente transformadas ao longo do tempo até chegar às suas mãos. É autor da Ilíada (alguns meses do último ano da Guerra de Trοia) e da Odisseia (sobre os dez agitados anos do nostos – regresso a casa – de Odisseu, após outros dez de envolvimento na guerra). Esses poemas épicos são centrais da literatura, cultura e educação gregas, com notável influência na civilização ocidental, inspirando muitos trabalhos de escritores, músicos e artistas plásticos. ● Odisseu (Ὀδυσσεύς), conhecido por Ulisses entre os romanos, bem como entre os portugueses (lenda da fundação de Lisboa): lendário rei de Ítaca e herói da Odisseia de Homero, desempenha um papel fundamental no épico homérico anterior (Ilíada) e ainda noutras obras do Ciclo Épico. Cônjuge de Penélope a Fiel, é-lhe atribuído o epíteto Odisseu o Astuto (μῆτις, inteligência astuta), pelo brilhantismo intelectual, astúcia e versatilidade (πολύτροπος). ● Por causa de tão longa ausência, em Ítaca presume-se que morreu e a sua esposa, Penélope, tem de lidar com um grupo de insolentes e importunos candidatos a novo casamento; estabelece então a condição de, antes de casar, terminar de tecer um sudário para o sogro; mas durante o dia tece o que à noite, sozinha, desmancha; traída por uma das servas, arranja outro estratagema: sabendo da dureza do arco do seu marido, põe a condição de só casar com aquele que o conseguisse encordoar; de todos, o único capaz de o fazer, foi um humilde camponês, que logo se apresentou, revelando ser o tão esperado Odisseu. ● D. Sebastião, rei de Portugal (1554-1578): nasce 18 dias depois da morte do pai, único príncipe herdeiro do trono; por contrato de casamento de sua tia paterna com Filipe II de Espanha, Portugal passaria a ser regido por Espanha (ideia desde sempre rejeitada pelos portugueses) caso não houvesse um sucessor; assim, já é o Desejado, mesmo antes de nascer, assegurando em simultâneo a independência do seu reino. Quando aos catorze anos assume o governo, empenha-se em resolver o problema da defesa das costas portuguesas, revivificando a ‘Reconquista’ do período do Al-Andaluz (722-1492); ao pedido de ajuda do quarto sultão de Marrocos para recuperar o trono e travar o crescimento do império otomano, responde planeando uma cruzada, para o que monta um esforço militar naquele território; ser dado como desaparecido em combate na desastrosa Batalha de Alcácer-Quibir (1578), gera uma crise dinástica que culmina na perda da independência para Espanha (1580-1640); a derrota e o desaparecimento do ‘menino-rei’, em quem o reino tanta esperança deposita, acrescentam-lhe os cognomes de Encoberto e Adormecido e dão lugar ao mito do Sebastianismo: lenda, crença ou movimento profético (finais do séc. XVI) que se refere ao regresso de D. Sebastião, numa manhã de nevoeiro, para cumprir a tarefa iniciada com o seu nascimento, ou seja, salvar a nação; esta espera é marcada por uma espécie de esperança passiva, paciente e resignada às suas próprias exigências, que de certo modo caracteriza, mais do que uma das formas de ser e estar dos portugueses, uma atitude que se pode manifestar noutras culturas, ou integrar outros mitos.

Penélope e os pretendentes, de John William Waterhouse (1912)
16. Meninos perdidos
– Amélia Muge / Tradicional da Trácia, A. Muge
• Arranjo: António José Martins, Michales Loukovikas
Meninos o tanas, / já somos crescidos
o tempo engana / nestes paraísos
a idade confusa / vê-nos pequeninos
e a gente refila, / nada agradecidosPerdidos, é certo, / nós continuamos
mas antes perdidos / que cheios de tretas
e dessas certezas / que nos põem todos
cegos e manetas, / surdos e pernetasNunca obedecemos / ao teu “tem de ser”!
nem dormimos cedo
damos cambalhotas / a espantar o medoNunca nunca nunca
nunca digas sim, / nunca digas não
sem saber porquê, / só por distraçãoEle há cada cara / de nariz emproado
não olha de frente, / só olha de lado
se aquilo que dizes / nada tem de meu
vai perder teu tempo / noutro que não eu
• Canto: A. Muge / Coro: Maria Monda, A. Muge • Acordeão: Filipe Raposo
Clarino: Manos Achalinotópoulos / Contrabaixo: António Quintino / Ney: Harris Lambrakis
Percussão: José Salgueiro / Violino: Kyriakos Gouventas
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● Meninos Perdidos: personagens da Terra do Nunca de J. M. Barrie; essa terra é uma ilha fictícia, um local fantástico que parece misturar as características de três lugares: de não-lugar (Utopia), de bom-lugar (Eutopia), de lugar do nunca (Udepotia). Peter Pan e os Meninos Perdidos recusam-se a crescer e a Terra do Nunca, no seu conjunto, é uma metáfora da eterna infância (manter a capacidade de ser curioso, de se maravilhar), da imortalidade (fugir à morte), do escapismo (escapar ao sofrimento); mas ali, igualdade, fraternidade e liberdade são valores gémeos da imaginação, da fantasia e da criatividade. ● James Mathew Barrie (1860-1937): escritor e dramaturgo escocês, escreve numerosos livros de histórias e peças de teatro; a sua criação mais célebre é Peter Pan, o menino que as fadas criaram, personagem principal da obra Neverland (Terra do Nunca) ou The boy who wouldn’t grow up, ou ainda Terra do nunca nunca, escrita para teatro e mais tarde publicada em livro. Os Meninos Perdidos são outras das personagens desta história, tal como Sininho, Wendy ou o Capitão Gancho. Ainda em vida, doa os direitos de autor desta obra ao Great Ormond Street Hospital for Children, de Londres.