AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
ARCHiPELAGOS / Passagens
VI. NA TAVERNA DO PORTO
● Versos quaisquer (Pedidos com instância)
● O Nicólas o psarás (Nicolas, o pescador)
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/ENGLISH/ ARCHiPELAGOS • VI. IN A HARBOUR’S TAVERN
/ΕΛΛΗΝΙΚΑ/ ΑΡΧΙΠΕΛΑΓΟΣ • VI. Η ΤΑΒΕΡΝΑ ΣΤΟ ΛΙΜΑΝΙ

ARCHiPELAGOS / Passagens: AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
12. Versos quaisquer
(Pedidos com instância, excerto)
– João de Deus / Amélia Muge
• Arranjo: António José Martins
Havia na Transilvânia, / Ao pé de Casco de rolhas
Um rei chamado Dencolhas, / Imperador da Circânia;
Tinha por cetro a catânea / Com que cortava o presunto,
E não gostava de assunto / Que não fosse de manérea
Que aquela cabeça aérea / Se risse e sorrisse muito.Pescava às vezes nos mares / Com anzóis de caparrosa,
E tinha sempre uma cousa / No pensamento elevádeo:
Era que o imenso rádio / Que o sol descreve nas márcheas
Exerce sobre as enxárcias / Influência tamanha,
Que só cabeça tacanha / Ainda põe em problêmea
Se acaso banhos de sêmea / Curam sezões na Alemanha.Ele tinha o cabelo aúreo / A modo de flor sulfúrea,
Cor um pouco, um tanto espúria / Mas de beleza nevrálgica.
E como na fronte mágica / Lhe brilhava a estrela fausta,
Um dia uma dama causta / De encontros superfinórios
Pôs-se com tais avelórios / A cativar-lhe os dois lúzios,
Que foram como dois búzios / À busca de promontórios.No Cabo da Boa Esperança / Se acaso a esperança tem cábeo,
É que ele viu no astrolábio, / Sua coragem hercúlea;
Mas com a face cerúlea / Tinha não sei que fatídico
Na mesma cerúlea fácea, / Agarrado à Musa Engrácia
Partiu no vapor Magnífico.Nunca mais voltou das plagas / A que aportou […]
• Canto: A. Muge • Acordeão: Filipe Raposo / Bouzouki, guitarra: Dimitris Mystakidis
Contrabaixo: António Quintino / Guitarra portuguesa: Ricardo Parreira / Violino: Kyriakos Gouventas
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● João de Deus (1830-1896): poeta e pedagogo português (Algarve), o bardo, que diz ser, intuitivo e observador da sociedade do seu tempo, leva uma vida de privações, sem procurar nem encontrar um modo estável de ganhar o seu sustento; sempre rodeado de grandes amigos, no final do curso de direito e no então agitado ambiente estudantil de Coimbra, escreve sátiras no mesmo estilo que marca o seu lirismo: uma poética de inspiração popular e tradicional, muito à maneira do que ainda hoje se encontra entre os poetas populares e repentistas do barrocal algarvio. Os Versos quaisquer (Pedidos com instância), talvez escritos nesta altura, foram aqui submetidos a uma interpretação livre; o jogo com os sons das palavras, de populismos casados com academismos, ou com o ‘latinário’ da evocação de Virgílio, têm um sabor muito próprio a troça estudantil. Segundo o poeta e ensaísta Theófilo Braga, isso que é bello porque não é exclusivamente individual, essa vibração que fascina e inspira, é uma orientação tradicional que depois de Camões os poetas portuguezes perderam, e que João de Deus por um tino genial soube tornar a achar (em As melhores ideias na literatura portuguesa). ● Versos quaisquer – chaves de uma leitura livre do texto: quiçá dedicado a um colega, figura de tipologia perene, novo-rico extravagante que não distingue jóia verdadeira de falsa, confuso de ideias, aflito pregador de crendices muito científicas (muito actual portanto), vítima do esplendor que em si mesmo vê e acrescenta, mas sem malignidade que estrague a dignidade de ser lembrado pelos colegas, eis alguns dos termos arrebanhados para a narrativa da história: Dencolhas – de + encolhas, retraimento, covardia / Circânia – as redondezas / catânea – catana, faca de cortar mato / anzóis de caparrosa – caparrosa é um sulfato de ferro e os anzóis feitos deste material eram os mais caros do mercado / márcheas – marchas (do sol) / sêmea – farinha fina, ‘flor de farinha’ / sezões – febres altas, paludismo / estrela fausta – ‘estrela do luxo’ / causta – misto de casta (pura) e de cáustica (perigosa, ardente, que queima) / avelórios – bijuterias/ promontórios – sítios elevados onde se chega trepando; cábeo – cabo, como em final, que se acaba e como em cabimento ou razão de ser / cerúlea – cianosada, da cor dos afogados / musa Engrácia – musa com graça, engraçada, por quem se engraçou / vapor Magnífico – barco idêntico àquele onde todos um dia embarcaremos, mas de luxo. (Teresa Muge)
● Transilvânia: uma região histórica, localizada onde hoje é a zona central da Roménia. É conhecida pela beleza cénica dos seus Cárpatos e pela sua rica história. No Ocidente, tem sido associada aos vampiros devido ao famoso livro Drácula, de Bram Stoker e às suas várias adaptações cinematográficas.● Cabo da Boa Esperança: promontório rochoso na costa atlântica da África do Sul (150 km do Cabo das Agulhas, que divide o Atlântico do Índico). A primeira dobragem moderna do Cabo é feita por Bartolomeu Dias em 1488; inicialmente chamado de Cabo das Tormentas, devido ao mar muito agitado que Bartolomeu apanhou na viagem de ida, foi depois baptizado, provavelmente por D. João II, como o da Boa Esperança, por constituir um marco histórico nas tentativas portuguesas em descobrir uma ligação por mar com os mercados do oriente. Permanece na memória como um lugar inóspito e remoto, apenas ao alcance de corajosos e intrépidos navegadores; coisas de heróis como Hércules (a quem existiu um forte culto na Península Ibérica), capazes de vencer o monstro Adamastor das crenças lusitanas, herdado da mitologia greco-romana e referido em Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões. ● De acordo com Heródoto, os Fenícios podem ter realizado um périplo da África c. 600 a.C. a partir do Mar Vermelho. Eudoxo de Cízico (408-355 a.C.), navegador grego da dinastia helenística ptolemaica no Egipto, encontrou, nas águas do Índico, um navio afundado que parecia ter vindo de Gades (actual Cádis, Andaluzia). A partir deste mesmo local tentou então, por duas vezes, circum-navegar o continente africano sem sucesso. Perdeu-se nas viagens e muito provavelmente, na segunda, perdeu também a vida.
13. O Nicólas o psarás / Nicolas, o pescador
– Giorgos Mitsakis / Vasilis Tsitsanis
• Arranjo: Michales Loukovikas
P’la madrugada regressaram
todos os barcos mais velozes,
só o Nicolas pescador – pescador,
ninguém ainda avistou – avistou.Em frente ao mar quem está de pé
uma mulher toda de negro
ali parada e assustada – assustada
é a mãe de Nicolas pescador.Nenhum lhe queria falar
explicar o que se passou
que o seu Nicolas se’afogou – se’afogou
e que do mar nunca mais vai regressar.Passaram meses muitos meses
lá continua em frente ao mar
só vive a esperança no seu peito – no seu peito
de ver seu Nicolas chegar, regressar.
• Adaptação para português de Amélia Muge
• Canto, coro: M. Loukovikas • Acordeão: M. Loukovikas
Baglamás, bouzouki, guitarra: Dimitris Mystakidis / Contrabaixo: António Quintino
Guitarra portuguesa: Ricardo Parreira / Ney: Harris Lambrakis / Violin: Kyriakos Gouventas

Giorgos Mitsakis (esq.) e Vasilis Tsitsanis (dir.)
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● Giorgos Mitsakis (1921 – 1993): nascido em Constantinopla, vem com a família para a Grécia em 1923; cedo atraído e interessado pela música popular, começa a estudar música contra a vontade da família que queria que se fizesse pescador; aos 16 anos foge para Tessalónica onde conhece Vasilis Tsitsanis e toca com vários outros músicos; prolífico compositor e letrista de muitas canções rebético e laïkó, foi apelidado de mestre como tocador de bouzouki. ● Vasilis Tsitsanis (1915-1984): extraordinário escritor de canções e tocador de bouzouki, ganhou proeminência entre os mais importantes compositores gregos do seu tempo; é considerado como um dos fundadores da música popular urbana da modernidade (rebético e laïkó), preparando e abrindo caminho a outros grandes compositores como Manos Hadjidakis e Mikis Theodorakis ● Rebético: música popular urbana grega, que reflecte sobretudo os ambientes de vida dos mais pobres e marginalizados, que foi evoluindo desde o final do séc. XIX até à década 50 do séc. XX. Do ponto de vista musical, resulta de uma síntese de música grega (continente e ilhas), canto eclesiástico bizantino, tradições modais da arte oriental, música do tipo café-amán e ainda de vários elementos da música europeia. Apesar de as melodias da maioria das músicas do rebético seguirem um ou mais modos musicais, são harmonizadas de uma maneira que não corresponde à harmonia nem da música europeia convencional, nem da música oriental monofônica. Existem duas escolas de rebético: a de Esmirna (a mais antiga, onde se inclui a música de Constantinopla e de outras cidades otomanas, em que tocavam instrumentos como a lira ou o violino, o qanun ou o santur), e a do Pireu (que abrange também a música de Atenas, de Salónica e de outras cidades gregas), tendo o bouzouki como instrumento central e comum a todas elas. A laïkó é um tipo de canção popular grega que aparece no seguimento da comercialização do rebético nos anos 50 do séc. XX. ● Bouzouki: instrumento de cordas da família do alaúde, de caixa de madeira achatada à frente, bojuda atrás e um braço longo, com larga tradição na Grécia, Líbano e Síria; o bouzouki árabe possui trastes móveis, que permitem a produção de intervalos microtonais; na Grécia, é modificado em conformidade com o bandolim napolitano (passa a ter trastes fixos, que produzem intervalos temperados) e rapidamente se torna no instrumento central do rebético. O seu nome pode vir dos termos persas tanbur e bozorg (amplo/grande); é semelhante ao tambur, à thaboura e à antiga pandura, possívelmente originária da Assíria. Num baixo relevo em mármore de 330–320 a.C. aparece uma musa grega tocando pandura. O tzourás e baglamás são versões mais pequenas do bouzouki. O bouzouki irlandês, com a parte de trás mais achatada e diferente afinação, é um desenvolvimento recente, devido à sua introdução na música irlandesa por volta de 1965.