AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
ARCHiPELAGOS / Passagens
II. CANTOS DA ARGILA
● Embalar meninos, acordar adultos
● Mágissa Thálassa (Mar feiticeiro)
/ENGLISH/ ARCHiPELAGOS • II. SONGS OF CLAY
/ΕΛΛΗΝΙΚΑ/ ΑΡΧΙΠΕΛΑΓΟΣ • II. ΤΡΑΓΟΥΔΙΑ ΑΠΟ ΠΗΛΟ

ARCHiPELAGOS / Passagens: o novo projeto de AMÉLIA MUGE & MICHALES LOUKOVIKAS
03. Embalar meninos, acordar adultos
– Amélia Muge / Anónimo: Hino Hurrita a Nikkal (fragmento) &
José Gomes Ferreira / Fernando Lopes-Graça (excerto de Acordai!)
• Adaptação: A. Muge / Arranjo: António José Martins
Dorme, dorme / dorme tempo,
que és menino / sempre novo,
mais antigo / do que o mundo,
mundo que já veio / de outro mundo,
nem sabemos / como começou.Dorme, dorme / dorme tempo,
de um estar / tão profundo
que até confunde / alto e baixo,
o ar com a terra / e o mar.
Dorme tempo / neste canto
que transita / na garganta / se agiganta
ah ah ah ah ah / navegando, embalando.Ah ah ah ah ah,
Acordai / que o dia
ressuscita / a palavra
feita ilha / de sentidos
já vividos / já vivendo
e que ainda hão de vir
e tornar a crescer / e a morrer
entre o ser e o não ser.“Acordai / homens que dormis
a embalar a dor / dos silêncios vis
vinde incendiar / de astros e canções
as pedras do mar / o mundo e os corações.”Acordai
que a palavra se transforma
em plantio, em colheita
que é da terra, que é do mar / são as ilhas
ah ah ah ah ah / navegando, acordando.
Acordai!
• Canto: A. Muge • Clarinete: Kosmás Papadópoulos / Contrabaixo: António Quintino
Ney: Harris Lambrakis / Violino: Kyriakos Gouventas
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Epitáfio de Seikilos: a mais antiga composição musical completa encontrada (c 200 a.C. a 100 d.C); gravada uma lápide, perto de Aidin (Turquia – próximo de Éfeso), está registada em notação musical da Grécia Antiga, a letra assume a forma de um epitáfio, com a indicação de que teria sido feita por um certo Seikilos para a sua esposa, presumivelmente sepultada no local. Esta composição também está presente no CD Periplus, tema 6 – Deixa Brilhar (Epitáfio) (sequência C – Dos Cantos), cantado por Hélia Correia.
● Hino Hurrita a Nikkal (c. 1400 a.C.): os Hurritas viveram na Idade do Bronze (norte da Mesopotâmia e da Anatólia oriental); o Hino a Nikkal é a canção mais antiga quase intacta de que se conhece o registo das palavras e da notação musical; descoberta em 1950 em Ugarit (Síria), entre 36 músicas inscritas em caracteres cuneiformes sobre placas de argila, antecede quase um milénio e meio o Epitáfio de Seikilos (ou Sícilo, c 200 a.C. – 100 d.C.); é um dos dois hinos dedicados à deusa Nikkal e faz parte da história do seu casamento com o Deus da Lua. No topo da placa de argila estão as palavras, num dialecto Hurrita local difícil de entender e, abaixo, a notação musical acadiana (mesopotâmica) de uma canção para acompanhamento com sammûm (tipo de lira ou harpa de nove cordas), com notação numa escala diatónica de sete notas. Ao contrário de outros, este hino é anónimo e a sua transcrição musical permanece controversa, havendo pelo menos cinco versões alternativas; numa das versões diatónicas, existe uma tocante e extraordinária semelhança com algumas das frases musicais mais identificativas da emblemática canção portuguesa Acordai!, de Fernando Lopes-Graça (escrita por volta de 1946, quatro anos antes da descoberta deste hino); então, enquanto Embalar meninos, acordar adultos realça a extraordinária identidade com Acordai!, Mágissa Thálassa (Mar Feiticeiro) combina o género diatónico com um cromático. ● Nikkal: deusa da fruta ou da lua, filha do deus do verão, o seu nome completo (Nikkal-wa-Ib) significa fruta ou também brilhante; é a versão ocidental da deusa suméria (pré-babilônica) Ningal, a Grande Senhora, esposa da lua, mãe da mais famosa deusa do amor (Inanna / Ishtar) e do deus do sol. O Hino hurrita a Nikkal parece fazer parte do ritual de casamento dessa deusa com Yarikh, o deus da lua. ● Ugarit: parte de uma área frequentemente referida (especialmente na Bíblia) como Canaã, é uma antiga cidade portuária no norte da Síria que, por volta de 1190 a.C., ardeu completamente num incêndio provocado pelos Povos do Mar – suposta coalizão marítima de invasores originários da Ásia Ocidental Menor e do sul da Europa – que contribuiu para o colapso da Idade do Bronze. ● Fernando Lopes-Graça (1906-1994): compositor, pianista, musicólogo, pedagogo, crítico e ensaísta, com uma extensa obra musical e uma profícua obra literária; de formação humanista, com intensa actividade cultural e política, activista contra o regime de Salazar e membro do Partido Comunista, é preso e proibido de leccionar; vive e estuda música em Paris entre 1937 e 1939. Autor de obras literárias de reflexão sobre música, em especial portuguesa – erudita e tradicional – colabora com várias revistas literárias (Vértice e Presença p.exp.); assume especial importância a recolha e a reinterpretação de música popular portuguesa, cujas influências na sua obra são assumidas e evidentes; cria ciclos de canções com textos de grandes poetas portugueses (José Régio, Fernando Pessoa, Luís de Camões, José Gomes Ferreira). ● José Gomes Ferreira (1900-1985): poeta, ficcionista e jornalista português, presente em todos os grandes momentos de sinal democrático e antifascista, vem a ser membro do Partido Comunista Português; colabora com vários poetas e revistas representativas do modernismo e do neo-realismo português; na poesia, inicia-se com a publicação de Viver sempre também cansa (1931) na revista Presença; com Fernando Lopes-Graça, é autor de Acordai!, uma das canções mais emblemáticas do antifascismo português; sub- presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1978), é homenageado pelo Município de Lisboa (1985) que atribui o nome do escritor a uma rua da capital.

Hino Hurrita a Nikkal (14º – 13º séc. a.C.)
11. Mágissa Thálassa / Mar feiticeiro
(Novos povos do mar, fragmento)
– Michales Loukovikas / Anónimo: Hino Hurrita a Nikkal
• Adaptação / Arranjo: M. Loukovikas
Quando miro o mar / os meus olhos,
ficam cheios d’água, / nada o pode domar.Odisseu Aylan, / tua Ítaca já não há.
Foi tão breve a viagem / dessa tua vida.
Todos vêem a tua imagem / tu onde estarás.
Era Europa o novo chão, / sem Penélope ou condão,
o cuidado maternal / também se afogou.
Já o tempo congelou, / dorme em água tão profunda.
É Poseidon que te afunda, / Odisseu…Quando miro o mar, / d’olhos rasos de água.
Feiticeiro. / Quando miro o mar…Sempre que daqui / miro o mar,
fico a perguntar / ele onde estará
esse qu’eu perdi / quem o encontrará?Feiticeiro, mar ó mar.
• Adaptação para português de Amélia Muge
• Canto: Andreas Karakotas • Contrabaixo: António Quintino / Harpa: Ana Dias
Ney, flauta de bisel: Harris Lambrakis / Percussão: José Salgueiro / Violino, viola: Kyriakos Gouventas

Odisseu e as Sereias, mosaico (séc. II d.C.) Tunísia
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● Odisseu (Ὀδυσσεύς) finais do séc. XIII-princípios do séc. XII a.C.: lendário rei de Ítaca e herói da Odisseia de Homero, desempenha um papel fundamental no épico homérico anterior – Ilíada – e ainda noutras obras do Ciclo Épico. Cônjuge de Penélope – a Fiel, é-lhe atribuído o epíteto Odisseu – o Astuto (μῆτις, “inteligência astuta”), pelo brilhantismo intelectual, astúcia e versatilidade (πολύτροπος). É famoso pela sua Odisseia – os dez conturbados anos do seu nostos (‘regresso’ a casa; o ‘regresso’ do herói), após a década que durou a Guerra de Tróia; é conhecido por Ulisses entre os romanos, bem como entre os portugueses (Lenda da Fundação de Lisboa). ● Aylan (2012 ou 2013-2015 – Alan Kurdi inicialmente referido como “Aylan”): criança sírio-curda cuja imagem fez primeiras páginas nos média de todo o mundo por se ter afogado no Egeu a 2 de Setembro de 2015, entre Bodrum (antiga Halicarnassus) e a ilha de Kos; fazia parte de uma família de refugiados que tentava chegar à Europa de barco. ● Poseidon: um dos doze deuses olímpicos do panteão grego, o seu domínio são os oceanos, o Pélago (mar profundo), pelo que é chamado de deus dos mares; na Odisseia é conhecido pelo seu ódio a Odisseu (cegou um dos seus filhos – o ciclope Polyphemus), criando-lhe diversos obstáculos ao seu nostos ao longo de vários anos.